sábado, 4 de julho de 2015

#08 A incrível Índia

O país contradição
Terceira parada: Índia. Como é difícil descrevê-la...
Indicativos são fáceis: 1,3 bilhões de habitantes, 10ª economia em PIB (US$ 1,87 trilhões), 22,5% da população analfabeta, expressiva produção agropecuária (aproximadamente 50% da força de trabalho do país) e um primeiro ministro que assumiu em 2014 com propostas ambiciosas de desenvolvimento de infraestrutura e erradicação da corrupção.
Sendo bastante sincera, a grande questão indiana está no sentimento que essa experiência nos despertou. A Índia é marcada por contradições: população miserável, e ainda assim tão alegre e receptiva, grande discriminação de gênero, e ainda assim conhecemos mulheres fortes e líderes em suas comunidades, maior rebanho bovino do mundo, e não consomem carne bovina, hotéis cinco estrelas margeados por grandes favelas, um dos maiores players no agronegócio global, e inúmeros empreendimentos rurais sem qualquer indício de mecanização.
Em resumo, o país tem uma personalidade muito distinta e atípica, em que beleza e pobreza se complementam.
Sua “digestão” se dá aos poucos. Por dez dias percorremos as cidades de Madurai, Thekkady, Amritsar, Ludhiana e Delhi, do sul ao norte. Não descreverei as atividades diárias, mas as dividirei em duas etapas: ao sul, sob guia do também nuffieldeiro Ramesh Thiruppathi, e nas cidades centrais, com o acompanhamento de Malwinder Malhi, gestor de projetos na Syngenta.
A primeira visita, em Chennai, foi à cooperativa Aavin, um ótimo começo, em que pudemos nos deparar, pela primeira vez, com as verdadeiras proporções de um país de 1,3 bilhão de cidadãos.
Aavin é a marca do leite produzido pela cooperativa Tamil Nadu, e engloba os processos de coleta (dos produtores), processamento e venda, além de produtos lácteos. A empresa fornece mais de 1,5 milhão de litros todos os dias (apenas em Chennai), e se encarrega também da entrega ao consumidor, porta a porta.
O estado de Tamil Nadu possui uma população de aproximadamente 75,0 milhões de habitantes, um rebanho de 100,0 milhões de vacas e 2,2 milhões de produtores associados à cooperativa. É difícil imaginar como uma organização tão grande se mantém coordenada e acessível à defesa dos interesses de todos os cooperados, mesmo considerando-se que a assistência técnica e insumos rurais são fornecidos (sob duras críticas de ineficiência) pelo Estado.
Visitamos também as instalações da LS Mills Limited, empresa de fiação em Madurai. Com estrutura moderna e diferenciada, a empresa conta com mais de 2,5 mil colaboradores, que recebem, em média, US$ 0,18 a hora trabalhada, do preparo da pluma do algodão à fabricação de tecidos (200, 500, 1.200 linhas...). Este é só mais um dos fatores que me faz pensar que, talvez, a indústria têxtil no Brasil realmente já tenha perdido a sua oportunidade de ouro.
LS Mills Limited
Com uma consecutiva retração da receita ano a ano e perda de mercado interno para produtos importados, estamos em desvantagem em relação à Índia tanto em qualidade de produtos quanto em custo de produção. Não tenho embasamento estatístico para discutir a folha de pagamento do cotonicultor brasileiro, mas com certeza não nos nivelamos à baixíssima faixa salarial indiana. A deterioração do setor leva em conta, também, o cenário macroeconômico que vivemos no presente. Se a situação é grave e generalizada, imaginemos para setores que já estavam em crise anteriormente.
Conhecer um país e o funcionamento de seu setor agrícola significa, também, conhecer os pequenos empreendimentos, os de pequena escala, produção dedicada parcialmente à subsistência, de baixo fator tecnológico. Por isso, fico feliz que tenhamos nos reunido com os produtores da vila Wadala Khurd em Amritsar, já na segunda parte do percurso.
Conhecemos 30 famílias que cultivam em média 5,0 hectares (cada) de arroz, trigo e outros. Aparentemente, os produtores menos capitalizados são praticamente invisíveis ao radar de subsídios do governo. O recurso existe, mas a normativa e a corrupção (tão tangente quanto a brasileira) fazem com que seja praticamente inacessível aos menos favorecidos: juros elevados, assistência técnica teoricamente gratuita e pública, mas que segundo as famílias é inexistente, falta de fomento ao desenvolvimento da cadeia de agrícola da região, que poderia agregar valor aos produtos locais, dentre inúmeros outros problemas...
Um agradecimento especial a essa comunidade, que nos recebeu com tanto carinho e se mostrou tão disposta a discorrer sobre seus problemas e aspirações. Que o sucesso seja consequência de sua superação, vencendo todas as circunstâncias adversas que a circunda.
Em contato com a produção acadêmica indiana, visitamos a Punjab Agricultural University (PAU). Passamos o dia com os pesquisadores da instituição, nos núcleos de pesquisa de aquicultura, pecuária, grãos e cereais, e conversamos com o corpo da reitoria.
Para lidar com uma realidade em que mais de 50% da mão-de-obra do país está inserida na agricultura, a equipe de extensão da universidade tem feito um incrível trabalho de busca por soluções em insumos e manejo para produtores de baixa escala, ou com pouca inserção tecnológica.
Me impressionou o comprometimento desses profissionais com o desenvolvimento da agricultura do país. Em geral, a Índia é representada por produtores pouco capitalizados, dependentes de subsídios do governo e distantes das práticas agrícolas atuais. No entendimento dos acadêmicos, a disparidade em produtividade e oportunidade de crescimento no setor agrícola entre o simples agricultor e os grandes produtores só será superada (ou ao menos amenizada) se esses pequenos receberem alguma forma de assistência pública, direcionada às suas condições de trabalho. Subsidiá-los com infraestrutura não é o suficiente para que prosperem. É preciso que tenham conhecimento de manejo e acesso às melhores sementes às condições edafoclimáticas regionais, e que estejam inseridos em algum tipo de comercialização. Só assim, serão capazes de se tornar competitivos e sobreviverem à expansão agropecuária que a Índia tem experimentado.
Conhecemos também a fazenda do empreendimento Namdhari Seeds, empresa de sementes de flores, vegetais e frutas, líder na Índia e 6ª maior do mundo. A empresa exporta para a Europa, Ásia e América, conta com mais de 2,0 mil colaboradores e contrato com 10,0 mil produtores, em mais de 4,0 mil hectares.
Frutas deliciosas na Namdhari Seeds
Bem sucedida e estabelecida, a companhia busca agora expansão via investimento externo, objetivando maior projeção internacional. A abertura de mercados tão rigorosos em relação ao tratamento de alimentos, como o europeu, tomou novas proporções com o desenvolvimento da cadeia de frios, que nos últimos cinco anos cresceu à média de 20% ao ano no país. Possibilitou, também, significativa redução no desperdício de frutas e vegetais indianos (estima-se que próximo aos 40%, quantidade suficiente para suprir o consumo brasileiro).
No mesmo dia, visitamos uma das empresas que mais gostei de conhecer na Índia: a Quality Fruit & Veg. Co.. Tivemos uma conversa muito interessante e inspiradora com o CEO, Nick Delgado, sobre crescimento e gargalos à gestão de empresas rurais. Nick veio do setor financeiro, e ao prestar consultoria a um grupo de produtores em Ludhiana, ao invés de aconselhá-los, começou a fazer uma série de perguntas, impressionado com a competência com que geriam o negócio.
Depois de abandonar o mercado financeiro, desiludido com a crise do subprime, Nick fundou a Quality Fruit & Veg. Co., investindo num trabalho que já estava sendo feito na região de Ludhiana com produtores de frutas e vegetais orgânicos.
Numa fala muito sincera e consciente, Nick discorreu sobre a necessidade de o pequeno produtor se distinguir para sobreviver. Segundo o CEO, traders não estão interessados na origem da commodity, o que contribui à baixa lucratividade dos produtores orgânicos. Estes devem investir em escala e exportarem eles próprios. Só assim, pela distinção e independência comercial, obterão melhores oportunidades de crescimento.
Nick também justificou a (praticamente) inexistência de cooperativismo no cenário agrícola indiano, graças à falta de confiabilidade entre os agricultores. Quando determinado grupo funda uma organização cooperativista, na maioria das vezes esta cresce substancialmente, mas de maneira desorganizada, sem base para se manter sustentável, vindo a se tornar domínio público (vários exemplos na Índia). O problema central, mais uma vez, está na falta de coesão entre os integrantes da cooperativa, sob o fato de confiarem em si mesmos.
Assimilei muito de sua fala com o que vem ocorrendo no Brasil em novas fronteiras agrícolas. O estado de Sergipe, por exemplo, tem grande potencial para o plantio do milho, podendo inclusive mudar a presente polarização do cereal no Centro-Sul. Observa-se vários produtores capitalizados, prósperos em seus negócios, mas que poderiam auferir margens substancialmente superiores se optassem por integração em cooperativa. A razão pela qual isso não acontece? A mesma que a indiana: desconfiança. Isso faz com que a fronteira se expanda lentamente, adiando oportunidades valiosas de investimento no setor.
Na visita à Embaixada Australiana em Dheli, conversamos com Kuhu Chatterjee, gerente regional do sul da Ásia na Australian Centre for International Agricultural Research (ACIAR), entidade dentro do setor de Relações Exteriores e Comércio da Austrália, que busca promover o crescimento de economias emergentes asiáticas (com foco na Índia), incentivando cientistas e instituições australianas a usar de suas habilidades na solução de problemas agrícolas nesses países. A temática que fundamenta sua atuação é segurança alimentar, e os pequenos produtores são instruídos sobre cultivo sustentável, melhores práticas de manejo e administração de seus empreendimentos.
Numa visão além relação entre países emergentes e Austrália, Kuhu discursou sobre as alternativas mais adequadas à agricultura indiana no presente. Não estando preparada para atender ao mercado internacional, considerando-se alguns produtos, o país deve se ater à movimentação doméstica. Algumas de suas mudanças de perfil: dieta mais voltada ao consumo de carboidratos, aumento da renda per capita, aumento do consumo de proteínas (inclusive carne bovina), dentre outros.
O mercado interno necessita de reestruturação devido à, principalmente, desintegração no processo produtivo frente aos limites geográficos impostos. Mercados na Índia são, na maioria das vezes, limitados às fronteiras municipais, o que enfraquece a cadeia e prejudica a adição de valor aos produtos.
Ainda assim, 60% da população nacional depende dos rendimentos agrícolas para ter o seu ganha-pão, o que eleva o temor quanto à necessidade de segurança alimentar.
No desfecho de nossa passagem pelo país, e num dos pontos altos do GFP, visitamos a Asha.
A chave de ouro
Talvez (e infelizmente), uma das formas mais comuns de se identificar a Índia é por sua superpopulação e miséria. Segundo o World Bank, cerca de 180 milhões de pessoas no país vivem abaixo da linha de pobreza (US$ 1,78/dia), ou sob extrema miséria, ou sob condições de vida indignas, como quiser chamar...
Creio que todos nós bolsistas estávamos apreensivos em nos deparar com essa realidade, sermos invadidos pelo sentimento de impotência e, no meu caso, certa responsabilidade – não acho que fronteiras continentais amenizam o compromisso dos cidadãos do mundo uns para com os outros. A Asha, no entanto, foi a resposta para essa expectativa.
Essa é uma organização fundada em 1988 pela doutora Kiran Martin, que tem como objetivo trabalhar com a comunidade urbana indiana pobre, promovendo transformações e desenvolvimento sustentável, que resultarão em qualidade de vida às famílias. A instituição se baseia em valores cristãos de fé, esperança e amor, oferecendo serviços de capacitação, inclusão financeira, Educação e mobilizando recursos para que essa população desfavorecida se sinta encorajada para mudar, ela mesma, o meio em que vive.
A Asha não é (só) uma entidade beneficente, mas uma mão estendida (talvez a única) àqueles que buscam acesso aos direitos humanos básicos e melhoria de vida em Delhi. Por esse motivo, a miséria com a qual nos deparamos é, apesar de desafiadora, o recôndito de reforma da comunidade e da organização. Em meio aos casebres e poluição, encontramos rostos felizes, sorrisos largos, mentes sonhadoras, universitários, crianças criativas e muita, muita força de vontade. Encontramos, enfim, pessoas que se recusam a ser vítimas da circunstâncias, e que mudarão os rumos de seus próprios destinos (e também o do país, por que não?).
Parti da Índia com o coração aquecido e uma grande lição: a permanência de uma situação, seja ela qual for, é uma escolha pessoal. Por mais adversa que seja a condição em que estamos inseridos, sempre há algo que podemos fazer por nós e pela comunidade que nos abriga.
A Índia é habitada por 1,3 bilhão de pessoas, cercadas de problemas estruturais, corrupção, criminalidade e outros, mas não devemos (principalmente a imprensa internacional) nos esquecer daquela parcela que nada contra a maré, e se utiliza dos recursos que tem em mãos para mitigar a realidade emergente do país.

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